Há cerca de 18 anos, ela entrou como trainee na Acindar, subsidiária da ArcelorMittal na Argentina, seu país natal. Graduada em Administração de Empresas e mestre em RH e Gestão de Conhecimento foi conquistando novas posições no grupo multinacional de siderurgia. Esteve em unidades sediadas em Trinidad & Tobago, Canadá, Espanha e Luxemburgo, antes de aportar no Brasil, assumindo gerências diversas de RH até comandar a área de Comunicação, Investimento Social e Inovação de Aços Longos da América Latina, em 2018. Neste ano de 2021, tornou-se a diretora de Estratégia, Inovação e Transformação do Negócio da ArcelorMittal.
Paula María Harraca é uma executiva muito firme em seus propósitos à frente da que vem sendo internamente chamada de “Diretoria do Futuro”. Futuro que pode, inclusive, prescindir do aço, carro-chefe da história quase centenária da companhia. Isso porque, nesse porvir ainda pouco vislumbrado, em que veículos elétricos cruzarão as ruas – quem sabe os ares – de cidades inteligentes, o aço poderá ter caído em obsolescência, substituído por um novo material de maior sustentabilidade.
Hoje, ainda não é certo que essas previsões se confirmem. Mas, como diz Paula, é hoje que se cria o amanhã. Ou melhor, se cocria, junto a todos os agentes internos e externos. Dando protagonismo na inovação aos colaboradores da empresa. Saindo da tendência bipolar ou binária das organizações e inaugurando um lugar de integração e de paradoxo. Internalizando externalidades demandadas pela sociedade e, em alguns casos, exemplos de reparações históricas, como a Diversidade e a Inclusão. Aprendendo, desaprendendo e reaprendendo. Se tornando, enfim, uma empresa cuja existência seja socialmente legitimada por sua responsabilidade e poder transformacional.
É com axiomas como esses que Paula vai pontuando os princípios e propósitos da ArcelorMittal e os seus próprios nesta entrevista exclusiva à revista In the Mine. A diretora fala também das metas de expansão da presença feminina dos níveis operacionais à liderança da empresa; do reposicionamento da Fundação ArcelorMittal, braço social do grupo no Brasil e das dez Diretrizes de Desenvolvimento Sustentável. E, ainda, do Açolab, primeiro laboratório de inovação aberta da indústria mundial do aço e da siderurgia, e do fundo Smart Ventures, com recursos de mais de R$ 100 milhões, que começa a selecionar startups capazes de conectar a ArcelorMittal ao seu futuro. Por fim, dá a jovens administradores de empresa, carreira em que se formou, um recado que serve a iniciantes de qualquer profissão: “Seu maior concorrente é um só: quem vocês foram ontem”.
ITM: O que é a nova diretoria de Estratégia, Inovação e Transformação do Negócio da ArcelorMittal?
Paula:É o que, internamente, consideramos uma “diretoria do futuro” por congregar relevantes agendas de futuro da indústria do aço e da sociedade. Estamos unindo numa mesma estrutura as áreas de Estratégia, ESG (Governança Ambiental, Social e Corporativa), Novos Negócios, Inovação, Cultura Organizacional, Diversidade e Inclusão, Investimento Social, Business Transformation Office e Comunicação, Branding e Relações Institucionais. Essa diretoria tem como missão potencializar a performance de hoje com os desafios da indústria do aço e da sociedade.
ITM: De que forma será feita essa potencialização?
Paula: O caminho é o da integração. Na prática, temos o desafio de unir presente e futuro, aliando produtividade com sustentabilidade, desenvolvimento com respeito às pessoas, crescimento com responsabilidade, performance com cultura organizacional e liderança com consciência coletiva. Sair da tendência bipolar ou binária que as organizações, no geral, têm, inaugurando um lugar de integração e de paradoxo. É possível reunir elementos que parecem antagônicos, mas quando integradosviabilizam um lugar de potência. Precisamos nos dirigir hoje para o amanhã. Mas o amanhã se cria hoje e o que fazemos hoje precisa estar conectado com o amanhã.
ITM:Como o conceito de inovação tem se integrado à gestão e operação da empresa?
Paula:A trajetória da ArcelorMittal, que é bastante longeva, sempre foi pautada pela inovação e pioneirismo. Hoje, fala-se de inovação como algo novo, mas ela é tão antiga quanto a humanidade, dado que é a capacidade do ser humano de criar algo ou de melhorar o que já existe. No universo organizacional, essa competência permite que as empresas se mantenham relevantes em sua proposta de valor para colaboradores, clientes, comunidades e a sociedade em geral. Na gestão e operação, a ArcelorMittal trabalha a integração do conceito de inovação tendo como protagonistas seus colaboradores. Entendemos que a inovação não é exclusividade de uma área e que todos estão chamados à missão de se reinventar, de aprender, desaprender e reaprender. Assim, buscamos estimular essa competência através de vários programas estruturados, que são sempre revisitados e modernizados, funcionando como mecanismos de ativação dessa cultura de inovação.
ITM:Considerando a trajetória de quase 100 anos da ArcelorMittal, como seu negócio pode ser transformado?
Paula: Há dois grandes motivadores da transformação humana: a necessidade, quando o ser humano muda porque precisa mudar, e a paixão, quando se muda porque se quer mudar. Uma característica da ArcelorMittal é sua paixão de mudar para ser melhor. De forma que nossos clientes, colaboradores e comunidades queiram estar com nossa empresa porque ela é responsável e vai além de seus muros. Usamos a palavra “transformação” no sentido de aceleração demovimentos evolutivos. Quem transforma são as pessoas, com um novo olhar, e não a tecnologia, que vemos como um meio, um mecanismo, uma alavanca para a transformação, que começa com uma jornada individual de cada um.
ITM: E como se dá esse processo individual?
Paula: O ser humano possui três níveis de desenvolvimento: ter, fazer e ser. Os resultados que temos – individual e coletivamente – são consequências do que fazemos, o que passa por três pilares – comportamento, tomada de decisão e relacionamentos interpessoais. O que temos e fazemos, por sua vez, reflete no que somos, ou seja: valores, crenças e nível de consciência. Assim, toda transformação acontece no nível do ser. E é muito bom quando valores mudam evidenciando reparações históricas, como a diversidade e inclusão. As organizações têm a obrigação de internalizar essas externalidades, até por serem centenárias, aproveitando a oportunidade de acelerar movimentos evolutivos da sociedade.
ITM: O conceito de meio ambiente evoluiu para o de sustentabilidade e, depois, para o de ESG. Como essas mudanças foram assimiladas na ArcelorMittal?
Paula: O conceito de ESG não é novo, mas hoje traz outra robustez e entra para o centro da estratégia do negócio.Antes, ele existia de uma forma mais fragmentada, com a gestão ambiental de um lado, a gestão social por outro e a governança corporativa. O Sistema de Gestão Ambiental (SGA) da ArcelorMittal no Brasil se baseia em nossas dez DDS – Diretrizes de Desenvolvimento Sustentável – ecumpre requisitos como os da norma ISO 14001. Nossas unidades têm a responsabilidade de garantir a manutenção de suas licenças ambientais, a certificação do SGA em suas operações, o atendimento dos requisitos legais e a promoção de melhorias contínuas. Esse desempenho é garantido pelo monitoramento de parâmetros e investimentos ambientais, compartilhandotecnologias e práticasque já alcançaram o estado da arte em outras plantas do grupo. Do ponto de vista social, contamos com a Fundação ArcelorMittal, que completa 33 anos em outubro próximo, trabalhando na cocriação de iniciativas, programas e projetos sociais nos municípios onde atuamos.
ITM: Quais são os princípios de ESG da empresa?
Paula: Nossas dez DDS foram estabelecidas em função dos 17 ODS – Objetivos de Desenvolvimento Sustentável – da ONU (Organização das Nações Unidas). Elas se fundamentam nas melhores práticas e tendências de gestão e também em questões sociais, ambientais, econômicas e de governança do nosso negócio. Entre elas, otrabalho seguro, saudável e com qualidade de vida para nossos empregados; produtos que incentivem estilos de vida mais sustentáveis ou que criem uma infraestrutura sustentável; uso eficiente de recursos e altos índices de reciclagem; uso responsável de energia ajudando a criar um futuro com baixo carbono; e uma cadeia de suprimentos confiável para nossos clientes. Além de alguns objetivos importantes para a sociedade, reunimos nessas diretrizes questões como as de Diversidade e Inclusão, que já contam com metas e compromissos compactuados com a própria ONU.
ITM: Voltando à inovação, o que é o novo fundo Smart Ventures?
Paula: O Smart Ventures, com aporte de R$ 100 milhões, é uma iniciativa inédita da ArcelorMittal no mundo inteiro, sendo um motivo de orgulho que ela ocorra no Brasil. Nossa estratégia é identificar startups que já tenham uma solução validada para o desenvolvimento de negócios e novos produtos ou serviços ou que incorporem novas tecnologias que nos permitam aumentar nossa competitividade e enriquecer a proposta de valor de nossa cadeia de atuação. A prioridade são startups de mineração, siderurgia, construção civil – um de nossos principais mercados -, indústria, sustentabilidade e área comercial, incluindo logística e distribuição para o varejo.
ITM:O Smart Ventures replica a iniciativado Açolab, que também foi liderada por você?
Paula: O Smart Ventures é a continuidade da estratégia que começou em 2018 com o Açolab, o primeiro laboratório de inovação aberta da indústria mundial do aço e da siderurgia. Ele surgiu para cocriar soluções inovadoras que viabilizassem novos modelos de negócios, produtos e serviços para a ArcelorMittal, acelerando a evolução de nossa cultura. Hoje, seus projetos mostram inúmeros resultados, inclusive econômicos, mas o ganho principal foi o aprendizado de fazer diferente. As startups não pedem licença. Depois, se for o caso, elas pedem desculpas. Estão abertas à experimentação, são ágeis para corrigir seus erros e avançam por caminhos totalmente novos. Precisamos usar o capacete da humildade porque podemos saber muito de mineração ou produção de aço, mas não sabíamos inovar de forma diferente nessa nova economia mundial. Esse espaço de experimentaçãose consolida e se fortalece agora com o Smart Ventures.
ITM: O Açolab permanece em sua configuração atual?
Paula:Sim. Ele continuará com seus projetos e fazendo suas conexões de impacto. Eu gostaria de destacar que, das 15 mil empresas que compõem hoje o ecossistema de inovação do Brasil, 4,5 mil já estão conectadas ao Açolab. Ou seja, praticamente 30% das startups brasileiras já realizaram algum projeto, algum pocket, algum desafio para o Açolab. Esse histórico vai servir de referência para atrair startups potenciais para o fundo.
ITM: Qual é, então, o principal diferencial do Smart Ventures?
Paula:O fundo pretende evoluir nos horizontes da inovação – H1, H2 e H3. H1 é o horizonte próximo do corebusiness da empresa, tratando dos mesmos produtos em mercados já conhecidos; H2 é o horizonte de produtos existentes para novos mercados ou de novos produtos e serviços para mercados conhecidos; e H3 é o horizonte de novos produtos, serviços e soluções para novos mercados, ou seja, um novo negócio que pode nem ter nada a ver com o aço, no nosso caso. O Smart Ventures é nossa conexão com o futuro, com clientes de ponta, como cidades inteligentes e veículos eletrificados, que talvez nem utilizem mais o aço e sim um produto substituto que precisamos começar a estudar desde agora.
ITM:Como será a dinâmica de seleção de projetos para o fundo?
Paula: Já há um link para pré-inscrição de interessados no site do Açolab (www.acolabam.com.br). Nessa primeira fase faremos a prospecção do pipeline das startups, filtrando as que já trabalham para a ArcelorMittal e outras empresas e as que se cadastraram na chamada aberta. Na sequência, haverá uma análise estratégica e técnica, para avaliar quais se encaixam nos objetivos do fundo. Depois, passamos a uma análise mais aprofundada, do ponto de vista do valor agregado e de mercado, da tecnologia e dos empreendedores, que são fatores críticos para o sucesso do crescimento da startup. Chegamos então à negociação do acordo e incorporação da empresa ao portfólio de investimentos do fundo. Aqui, destaco o que chamamos de Smart Money, com mentorias e suporte do time executivo da ArcelorMittal para aceleração das startups participantes. O fundo fará seu investimento durante quatro anos. Passado esse período, pode ser gerado um IPO, feita a incorporação da startup ou formalizada sua saída do processo.
ITM: Há um teto mínimo e máximo de investimento por projeto?
Paula: Não. Depende do número de startups participantes. Se for apenas uma, ela terá os R$ 100 milhões.Em projetos de inovação, justamente pelos riscos que apresentam, o recomendável é ter uma composição de dez a quinze startups no portfólio para o balanceamento desses riscos. Assim, pretendemos investir o valor do fundo em até 15 startups.
ITM:Especificamente na mineração, quais são as áreas de maior interesse para a seleção desses projetos?
Paula: O nosso grande norteador é a aplicação de práticas da Indústria 4.0 na mineração, por serem tecnologias disruptivas que precisamos assimilar. Outro foco de interesse será o pilar de sustentabilidade, com destaque para a geração de resíduos, visando tecnologias que reduzam seu volume ou permitam o aproveitamento desse material. Eu destaco também as áreas de saúde e segurança. A adoção de veículos autônomos na operação, por exemplo, tem muito a ver com essas áreas.
ITM:Quais são as metas para a promoção de maior diversidade e inclusão?
Paula: Temos, na verdade, duas metas: uma lançada recentemente no Brasil e uma global. Em termos de presença feminina total na empresa queremos chegar a 30% do quadro funcional até 2030, o que é bastante ambicioso porque significa mais que duplicar o número de mulheres que temos hoje. Cerca de 80% de nosso time está na operação, que ainda tem uma presença predominantemente masculina, assim como ocorre na liderança da organização. Na liderança, nossa meta é chegar a 25% de mulheres até 2030. Criamos um comitê de Diversidade e Inclusão há alguns anos para um tratamento com equidade em todas as políticas de gestão de pessoas. Nesse comitê, temos quatro grupos de afinidades: Diversidade de Gênero, Diversidade Racial, LGBTQIA+ e PcDs (Pessoas com Deficiência). Cada grupo tem um líder, um colíder, um profissional de RH e um da área de comunicação. Temos também um Comitê Nacional, desde que iniciamos essa jornada há cerca de dois anos e que hoje conta com aproximadamente mil voluntários em toda a empresa, participantes de um ou de mais de um daqueles grupos, propondo ações afirmativas dessas causas.
ITM: A nova diretoria passa a responder também pela Fundação ArcelorMittal. Há mudanças significativas nessa área social?
Paula: Estamos em um momento de planejamento estratégico que revisita a Fundação ArcelorMittal, pensando sua atuação nos próximos cinco anos. Esse reposicionamento ocorre porque a fundação é muito low profile e pouco conhecida, apesar de todo o trabalho que realiza junto aos municípios onde atuamos. Ela deve passar a promover causas, principalmente a da educação, que não se materializa somente em salas de aula, mas também através de projetos de Esportes, Cultura e Ambientais. Entendemos, também, que há potencial de nos unirmos a outras fundações e institutos para endereçarmos outras causas sociais importantes como a de Saneamento. Estamos pensando em como potencializar nossa contribuição para maximizar o impacto de nossas ações,retornando um valor muito maior para a sociedade por cada real investido e conseguindo realmente transformar vidas.
ITM: Qual é a sua visão de futuro da ArcelorMittal?
Paula: Minha visão de futuro é que a ArcelorMittal seja uma empresa que a sociedade queira que exista. Esse “querer existir” é a legitimação externa de um crédito social à operação da empresa. Para isso, precisamos integrar os diversos interesses e os paradoxos dos diferentes stakeholders com os quais interagimos. ‘Criar aços inteligentes para um mundo melhor’ é o norte para onde seguimos todos os dias. Para alcançar esse objetivo nos baseamos na análise 5C, com seus cinco vetores: Causa; Colaboradores – como protagonistas que cocriam nossa inteligência para um mundo melhor -; Clientes, que trazem suas necessidades e participam dessa cocriação; Comunidades que nos acolhem e interagem conosco; e o Capital, representado pelos acionistas que acreditam que a empresa entregará valor de forma sustentável no futuro. A empresa será legitimada porque consegue balancear esses interesses internos e externos e exercitar seu protagonismo na transformação da sociedade.
Perfil:
Nasceu em: Rosário (Argentina)
Mora em: Belo Horizonte (MG)
Trajetória Acadêmica: Administração de Empresas pela Universidade Austral (Argentina). Mestre em RH e Gestão do Conhecimento pela Universidade de Leon (Espanha). Coach Executiva Organizacional pela ICF (International Coaching Federation) e em Finanças para Executivos, pela Wharton University (USA)
Trajetória Profissional: Trainee na Acindar, da ArcelorMittal, na Argentina (2003). Participou da implantação do modelo de gestão do grupo, em Trinidad & Tobago e no Canadá (2006-07). Gerente de Melhoria do Desempenho nas usinas de Aços Longos da Espanha e Luxemburgo (2008). Assessora do CEO de Aços Longos Américas (2011). Gerente de RH, SGI e Sustentabilidade, na usina de Cariacica – ES (2012). Gerente Geral de RH Industrial Aços Longos Brasil ede RH Aços Longos Brasil (2014). Diretora de Pessoas, Comunicação, Investimento Social e Inovação da Aços Longos LATAM (2018). Diretora de Estratégia, Inovação e Transformação do Negócio da ArcelorMittal (2021)
Família: Casada, com duas filhas de 7 e 4 anos
Hobby: Jogar tênis, malhar e ler
Um ídolo ou mestre: Dois mestres – Jesus e minha mãe
Time de Futebol:Barcelona
Maior realização: Conciliar a condição de mãe plena e presente e de parceira de meu marido com a missão de executiva empreendedora
Maior decepção: Não ter representado meu país nos Jogos Pan-Americanos como goleira de hóquei sobre grama devido a uma lesão no ombro
Um projeto: Promover transformações e humanizar os negócios. Inspirar pessoas e organizações para cocriarmos um mundo melhor
Um “conselho” a jovens administradores de empresas: São os que recebi de minha mãe antes do processo seletivo na ArcelorMittal há mais de 18 anos: “Seja você mesma. Se não for escolhida, esse lugar não é para você” e “Nunca abra mão dos seus valores. Quando precisar fazer isso, será o dia de pedir a conta”. Além deles, invistam tempo e atenção para se conhecerem e conhecerem as pessoas à sua volta.Por fim, tenham humildade para aprender, generosidade para compartilhar, responsabilidade para se comprometer e coragem para inovar. Seu maior concorrente é um só: quem vocês foram ontem.
Fotos: Leo Drumond/Nitro